História
de Jesus Segundo os Talmudistas
Eliphas Levi
No ano seiscentos e setenta e sete
do quarto milênio após a criação do mundo, durante os dias do rei Jannée, que
também se denominava Alexandre, uma grande desgraça veio em ajuda dos inimigos
de Israel.
Apareceu
então um certo miserável, homem sem consciência e sem moral, procedente de um
dos ramos derivados da tribo de Judá, que se chamava Joseph Panther.
Esse
homem era de estatura elevada, de vigor pouco comum e de notável beleza; havia
passado a melhor parte de sua vida nos desregramentos, roubos e violências, e
morava em Belém, cidade de Judá. Tinha por vizinha uma viúva cuja filha se
chamava Maria, e é essa mesma Maria, cabeleireira de mulheres, que é mencionada
em diversas partes do Talmude. Essa jovem, ao se tornar adolescente, ficara
noiva de um jovem chamado Jochanan, dotado de grande modéstia, de notável
doçura e do verdadeiro temor a Deus.
Ora,
aconteceu que, por desgraça, Joseph, passando em frente à porta de Maria,
olhou-a e sentiu arder por ela uma paixão impura; assim, ele passava, passava,
sem cessar; mas ela nem mesmo o olhava.
A apatia
apodera-se dele, e sua mãe, vendo-o destruir-se, lhe diz: “Por que te vejo
emagrecer e empalidecer?” Ele responde: “É que estou morrendo de amor por
Maria, que é noiva de outro.” Sua mãe lhe diz: “Não é preciso te atormentares
por isso; faz o que vou te dizer e poderás aproximar-te dela e com isso te
satisfazeres.” Joseph Panther escutou sua mãe, passando a rondar
incessantemente a porta de Maria, esperando a ocasião que não encontrava.
Quando, numa noite de sábado, vestido como Jochanan e ocultando a cabeça com
seu manto, encontrou Maria na porta, pegou-a pela mão sem dizer nada, e levou-a
para dentro de casa. Ora, ela, acreditando ser Jochanan, seu noivo, lhe diz:
“Não me toques; a hora em que deverei ser tua ainda não chegou e neste momento
estou protegida contra ti pelas enfermidades comuns de meu sexo.” Mas ele, sem
escutá-la, realizou sua má intenção e voltou para casa; em seguida, perto de
meia-noite, como a paixão o atormentasse ainda, levantou-se, voltou à casa de
Maria, que começou a chorar, lhe dizendo com horror: “Como vens me ultrajar uma
segunda vez, tu que eu acreditava ser incapaz de abusar de nosso noivado, e
como podes acrescentar ao crime a vergonha, visto que eu te disse que o estado
que me encontro nesse momento devia me tornar sagrada para ti?” Mas ele não
escutou suas palavras. Sem nada dizer, satisfazia seu desejo; em seguida
retirou-se e continuou seu caminho. Ora, após três meses, vieram dizer a
Jochanan que sua noiva estava grávida, e Jochanan, assustado, foi encontrar seu
preceptor Simão, filho de Schetach, lhe revelando o que se passava, perguntou o
que deveria fazer. Seu mestre perguntou-lhe: “Suspeitas de alguém?” Jochanan
respondeu: “Só posso suspeitar de Joseph Panther, que é um grande libertino e
mora na vizinhança.” Seu mestre lhe disse: “Meu filho, escuta meu conselho e
cala-te. Se este homem abusou uma vez de sua noiva, não é possível que não
procure revê-la. Trata de surpreendê-lo, chama testemunhas e faze com que seja
julgado pelo grande Sinédrio.” O jovem partiu muito triste, só pensando na
desgraça de sua noiva e na vergonha que poderia recair sobre ele; abandonou
Judéia e foi para a Babilônia, onde permaneceu.
Maria, em
seguida, tornou-se mãe de um filho que chamou Jehosuah, nome de seu tio
materno. Tendo a criança começado a crescer, sua mãe lhe deu por mestre
Elchanan. O menino fazia grandes progressos, porque tinha um espírito preparado
para a inteligência das coisas.
Isso
é extraído e traduzido textualmente do Sepher Teldos Jeschu.
A
primeira juventude de Jesus é narrada como se segue pelos autores
talmudistas do Sota e do Sanhédrin, que encontramos
citados à página 19 do livro da disputa de Jéchiel.
O rabino
Jehosuah, filho de Pérachiah, continuou, após Elchanan, a educação do jovem
Jesus, iniciou-o nos conhecimentos secretos, mas tendo Jannée feito massacrar
todos os iniciados, Jehosuah, para escapar a essa condenação, fugiu para
Alexandria, no Egito.
Esse
massacre dos iniciados, substituído pelo massacre dos inocentes, parece-nos
notável, sobretudo se nos recordamos de que no livro primeiro dos Reis
está dito que Saul, iniciado há pouco nos círculos dos profetas, era
uma criança de um ano quando subiu ao trono. Ora, Saul tinha, na realidade,
mais de vinte anos. Era, pois, costume nas iniciações proféticas da Judéia,
assim como nas da Franco-Maçonaria moderna, designar o grau dos iniciados por
uma idade simbólica, e o Evangelho, ao falar da morte das crianças de até
dois anos, não contradiria a asserção do Talmude, que a seu modo tornava-se
historicamente mais aceitável do que a narração do Evangelho.
Podem-se
encontrar traços da proscrição dos cabalistas, sempre perseguidos e denunciados
pela sinagoga oficial, mas não se encontra essa abominável matança de crianças
pequenas, que revolta a natureza e que desonrou para sempre o reino de Herodes,
se é a Herodes, como quer o Evangelho, e não a Jannée, como pretendem os
talmudistas, que se deve atribuir a condenação em questão.
Aqui os
talmudistas começam a envolver seu pensamento com alegorias, e eis aqui o que
nos contam. Jesus e seu mestre Ben-Perachiach foram, pois, residir em
Alexandria, na casa de uma senhora rica e sábia que os recebeu com honra e lhes
ofereceu todos os seus tesouros. Essa senhora, como podemos compreender, é uma
personificação do Egito. O jovem Jesus, tendo-a olhado, disse: “Esta
mulher é bela, mas tem um defeito nos olhos que deve prejudicar a retidão de seus
olhares. Essa terra é bela, mas é um magnífico exílio.” Seu mestre então
irritou-se com ele, por ter ele encontrado alguma beleza no Egito e por ter
admirado a terra da servidão. Jesus lhe disse: “Não há servidão para os filhos
de Deus e a terra que os abriga é sempre a terra de Israel.” Ben-Perachiach
amaldiçoou então seu discípulo e o rechaçou de sua presença. Jesus submeteu-se
humildemente, apresentando-se muitas vezes à porta do mestre, rogando-lhe que o
recebesse; o rabino permaneceu inflexível. Um dia, no entanto, quando lia os
mandamentos de Deus que ordenavam amar ao próximo, Jesus apresentou-se, e o
mestre, tocado pelo arrependimento, fez-lhe sinal para aguardar, tendo a
intenção de ceder e de recebê-lo, mas Jesus, entendendo que ele o repelia uma vez
mais, foi embora e não voltou. “Nossos pais procederam mal”, dizem, a esse
respeito, os doutores do Talmude, “ao rechaçar Jesus sem escutá-lo, e sobretudo
em, ao mesmo tempo, amaldiçoá-lo. Jamais batamos com as duas mãos naquele que
desejamos punir; guardemos uma para levantá-lo, consolá-lo e curá-lo!”
Palavra que contém todo um futuro, palavra que deve um dia trazer a
reconciliação entre os filhos e os pais; porque nós também amaldiçoamos os
judeus, rechaçando-os com as duas mãos; portanto, agora também é com duas mãos
que, de um lado e de outro, para expiar essa falta recíproca, devemos nos
perdoar e abençoar! Mas voltemos à história de Jesus, segundo os autores do
Talmude.
Vimos que
o jovem iniciado tinha admirado a ciência do Egito e fora rechaçado por seu
mestre por ter sonhado com uma conciliação entre a filosofia do exílio e a
religião pátria. A perseguição contra os cabalistas abrandou-se e Jesus voltou
à Judéia com seu mestre, ou pelo menos ao mesmo tempo que ele. Como vivera no
Egito? Trabalhando, sem dúvida, no seu ofício de carpinteiro. Ao entrar em sua
cidade natal, que segundo os talmudistas não era Nazaré, mas sim Belém, passou
em frente aos anciãos, que estavam reunidos, conforme o costume, à porta da
cidade, e não os saudou, mas ao passar seu mestre, Jehosuah Ben-Perachiah,
Jesus o saudou, provocando desta forma o murmúrio dos anciãos. Com efeito, o
jovem os desprezava porque não eram iniciados na verdadeira ciência, e só
reconhecia como seu superior aquele que lhe havia aberto a porta. Os anciãos
indignaram-se e o chamaram de filho de mulher impura, o que surpreendeu Jesus,
porque sempre tinha enxergado sua mãe como um exemplo de pureza. Foi consultar
um de seus tios, aquele que tinha o seu próprio nome, e este lhe revelou a
desgraça de Maria e todo o mistério de seu nascimento. Jesus retirou-se com o
coração ferido e não retornou mais à casa de sua mãe, começando a pregar a nova
ciência: a da reconciliação das nações e da religião universal com que tinha
sonhado no Egito. É então que nossos autores chegam às bodas de Canaã, na
Galiléia, onde Jesus reencontrou sua mãe e respondeu-lhe duramente quando ela
quis falar-lhe: “Mulher, o que há de comum entre tu e eu?” Em seguida, vendo-se
que a pobre mulher resignava-se com doçura, ficou com o coração comovido, e,
reunindo seus discípulos em torno de si, contou-lhes o crime de Panther e
perguntou-lhes: “Credes que eu poderei honrar este homem como pai?”
“Não!” Responderam todos em uma só voz. “Credes que minha mãe seja impura?”
“Não”, responderam novamente. “Pois bem”, disse Jesus, “não tenho pai
sobre a terra, meu pai é Deus que está no Céu, e quanto à minha mãe, sua
virgindade não poderia ser manchada por um crime no qual ela não consentiu. Eu
a considero sempre virgem. Pensais como eu?” “Sim”, responderam os
discípulos. “E é por isso”, acrescentaram os autores judeus, “que Jesus foi
considerado por todos os que crêem nele como filho de Deus e de uma virgem.”
Essa história apócrifa, ofensiva para os leitores cristãos, não deixa de ter
uma certa grandiosidade, e pode-se aí observar que os maiores inimigos do
cristianismo rendem uma homenagem involuntária à pureza de Maria e à elevação
de Jesus.
Aqui
começa a narração dos milagres, e os talmudistas, longe de negá-los, parecem
empenhar-se em exagerá-los. A lembrança dos milagres estava ainda bem viva e
bem forte entre os judeus. Mas eis como explicam esses milagres.
Eles
dizem que existe, no santuário do Deus vivo, uma pedra cúbica sobre a qual
estão esculpidas as letras santas, cujas combinações explicam as virtudes do
nome incomunicável. Essa explicação é a chave secreta de todas as ciências e de
todas as forças ocultas da natureza. É o que chamamos de Schema hamphorasch.
Esta pedra é guardada por dois leões de ouro que rugem no momento em que
tentamos aproximar-nos dela. Os leitores de nossas obras sabem o que é o Schema
hamphorasch e reconhecerão nos dois leões os gigantescos
querubins do santuário, cujas figuras monstruosas e simbólicas eram capazes de
amedrontar e de fazer recuar os profanos. Além do mais, as portas do templo
eram bem guardadas, acrescentam nossos rabinos; e a porta do santuário só
se abria uma vez ao ano, e somente para o grande sacerdote. Mas Jesus tinha
aprendido no Egito os grandes mistérios da iniciação e apoderou-se das chaves
invisíveis, com a ajuda das quais pôde entrar sem ser descoberto. Copiou os
segredos da pedra cúbica, ocultando-os entre as pernas, como na mitologia grega
vemos Júpiter ocultar Baco; em seguida, saiu e começou a surpreender o mundo. À
sua voz os mortos levantavam-se e os leprosos ficavam curados, fazia subir do
fundo do mar as pedras que lá estavam enterradas há séculos, e essas pedras
formavam uma montanha sobre as águas, e do cume dessa montanha Jesus instruía a
multidão.
Reencontramos
aqui, com todo o gênio do simbolismo oriental, o motivo secreto do ódio dos
sacerdotes contra Jesus. Ele revelou ao povo a verdade que eles queriam
esconder só para eles, adivinhou a teologia oculta de Israel e a comparou com a
sabedoria do Egito, e aí encontrou a razão de uma síntese religiosa universal.
Os sacerdotes procuraram então arruiná-lo, e enviaram à sua presença um falso
irmão chamado Judas Iscariotes, para fazê-lo cometer algumas faltas e
entregá-lo, assim, a seus inimigos. Esse foi o Judas que levou Jesus a
realizar, no momento em que os chefes da religião apresentavam animosidade
contra ele, uma entrada triunfal em Jerusalém, seguida de um tumulto no templo.
Fizeram, ao mesmo tempo, correr o boato de que Jesus encantava as árvores e as
tornava estéreis, que blasfemava contra a lei de Moisés, querendo fazer-se
adorar-se como Deus. No entanto, Jesus ia todos os dias ao templo, mas como os
judeus oravam com a cabeça coberta, ele se perdia nessa multidão envolvida em
hábitos brancos. Judas prometeu aos sacerdotes entregá-lo a eles e fazer, ao
mesmo tempo, um grande escândalo, que pudesse comprometê-lo aos olhos de todo o
povo. Ele veio com uma multidão de pessoas dedicada aos fariseus e,
prosternando-se diante de Jesus, ele o adorou. Os cúmplices de Judas
revoltaram-se contra o sacrilégio e quiseram lançar-se contra Jesus. Os
discípulos de Jesus tentaram defendê-lo. Jesus conseguiu escapar e refugiou-se
no Jardim das Oliveiras, onde foi perseguido e preso pelos guardas do templo.
Colocaram-no então numa prisão, onde ficou quarenta dias, durante os quais
fizeram proclamar seu ato de acusação ao som de trombetas e perguntaram se
alguém queria tomar sua defesa; mas ninguém se apresentou. Jesus foi então
flagelado como rebelde e, em seguida, apedrejado como blasfemador, num lugar
chamado Lud ou Lydda. Logo depois, deixaram-no expirar sobre uma cruz em forma
de forcado. Alguns de seus discípulos, que eram ricos, resgataram seu corpo e simularam
ostensivamente seu sepultamento; mas, na realidade, arrastaram-no secretamente
e enterraram-no no fundo do leito de um rio, cujas águas foram desviadas para
abrir sua tumba; depois, deixaram as águas retomarem seu curso. Isto explica
por que o corpo não mais foi encontrado quando os discípulos declararam que seu
mestre havia ressuscitado.
A essa
narrativa fundamental os autores do Sepher Toldos Jeschu acrescentaram
as mais ridículas fábulas, tiradas, evidentemente, das lendas cristãs alteradas
ou disfarçadas. É dessa forma que encontramos aqui a história da ascensão de
Simão, o Mágico, atribuída ao próprio Jesus Cristo, com a intenção evidente de
confundir o Messias dos cristãos como o famoso impostor. É desse modo ainda que
Simão Pedro ou Céphas é confundido, aqui, com Simão, o Estilita, prova evidente
do pouco valor histórico desse Sepher, que foi composto evidentemente
vários séculos após o início da era cristã. Os documentos talmúdicos são mais
sérios, porque o Talmude é a compilação de todas as tradições judaicas,
e é lá somente, fora dos monumentos cristãos, que se deve procurar a lembrança
desse personagem tão importante para a história, mas que todos os escritores
profanos ignoram ou desconhecem.
Essas
tradições, marcadas como devem ser por menosprezo e ódio com relação ao sábio
que os judeus crucificaram, contêm confissões preciosas em favor das crenças
cristãs.
Das
narrações do Talmude resulta, com efeito, segundo as tradições
judaicas:
1) que
Jesus de fato existiu;
2) que
ele nasceu em Belém;
3) que
sua mãe, de moral irrepreensível, era somente noiva de um homem justo e crente
em Deus, incapaz portanto de abusar de sua noiva;
4) que
o nascimento extraordinário de Jesus só se explica por um milagre ou por
um atentado que os judeus deviam necessariamente supor, visto que reconheceriam
a elevada moralidade da jovem virgem e não admitiam o milagre.
5) que
Jesus foi perseguido pela Sinagoga por causa do mistério de seu nascimento, e
mais ainda por causa da superioridade de sua doutrina;
6) que
essa doutrina supunha a iniciação nos segredos da mais alta teologia dos
hebreus, em conformidade, em muitos pontos, com a filosofia transcendente
dos iniciados egípcios;
7) que
ele realizava coisas prodigiosas, curando os doentes, ressuscitando os mortos e
adivinhando coisas ocultas;
8) que
só foi possível condená-lo e fazê-lo morrer por traição;
9) que
seu corpo não foi encontrado quando seus discípulos declararam que ele havia
ressuscitado.
Não
podemos, racionalmente, perguntar mais sobre esse assunto aos doutores hebreus
adversários de Jesus Cristo. As asserções do Talmude e do Sepher
Toldos Jeschu estão repetidas no Nizzachon vetus, ou antigo livro da
Vitória, na Controvérsia do rabino Jechiele em outras compilações rabínicas. O
Sepher Toldos, ao qual os judeus atribuem grande antiguidade e que ocultam
dos cristãos com precauções tão grandes que esse livro durante muito tempo não
foi encontrado, é citado pela primeira vez por Raymond Martin, da ordem dos
Irmãos Pregadores, quase no final do século XIII. Porchetus Salvaticus, pouco
tempo depois, publicou alguns fragmentos, dos quais Lutero se serviu e que se
encontram no VIII tomo de suas obras, edição da Iéna; mas não se possuía ainda
o texto hebraico. Esse texto, encontrado finalmente por Munster e por Buxtorf,
foi publicado em 1681 por Christophe Wagenseilius em Nuremberg, e em Frankfurt,
numa coleção intitulada Tela ígnea Satanoe, as flechas ardentes de
Satã.
Esse
livro foi evidentemente escrito por um rabino iniciado nos mistérios da Cabala.
Está escrito por dentro e por fora - para usarmos uma expressão de São
João, o grande iniciado cristão -, isto é, apresenta um sentido oculto e um
sentido vulgar. Os contos absurdos dos quais está impregnado são parábolas que o
autor quer opor àquelas do Evangelho. Censuram aqui duas coisas em Jesus
Cristo: 1) o fato de ter surpreendido ou adivinhado os mistérios do templo; 2)
tê-los profanado narrando-os ao vulgo, que os desfigurou e compreendeu
mal.
Não
podendo retirar a pedra cúbica do templo, ele fabricou, segundo o autor de Sepher
Toldos, uma pedra de argila, que mostrou às nações como sendo a verdadeira
pedra cúbica de Israel. Juntamos a esse fato a confissão que São Paulo deixa
escapar em uma de suas epístolas: “Somente a natureza podia revelar Deus aos
homens, e eles são imperdoáveis por não o compreender. Mas já que, com efeito,
não chegaram a Deus pela sabedoria, foi preciso salvá-los pela loucura, e
perguntar à fé o que não se obtinha pela ciência.” Quoniam non cognovissent
per sapientiam Deum, placuit per stuiltitiam proedications salvos facere
credentes. É essa loucura da fé que os judeus não querem compreender
e que denominam uma pedra de argila, como se a fé, que é a confiança do amor,
não fosse também durável e frequentemente mais invencível que a razão da
existência dos seres submissos às investigações da ciência. O amor encontra o
que a razão procura, ele vê aquilo que escapa às investigações da ciência.
Quando ele não sabe mais, começa a crer, e quando a razão esgotada pára e cai
no umbral do infinito, a fé abre suas asas, lança-se, dilacera as nuvens, faz
descer à terra a escada luminosa de Jacó e sorri docemente estendendo a mão à
sua irmã.
Talvez os
cristãos tenham primeiro glorificado a fé de maneira a fazer crer que
renunciavam à razão. É por isso que, em relação a nós, os judeus
transformaram-se em severos guardiões das tradições antigas e protestam
eternamente contra todas as idolatrias. São adversários que nos vigiam, que nos
advertem e que reconciliaremos um dia ao lhes provar que toda dissidência que
os separa de nós repousa sobre um mal-entendido.
Encontram-se
nos livros atribuídos a Hermes essas estranhas lamentações do sábio
Trismegisto: “Ah, meu filho, um dia virá em que os hieróglifos sagrados
tornar-se-ão ídolos; tomarão os signos das ciências para os deuses, e
acusar-se-á o grande Egito de ter adorado monstros. Mas aqueles que nos
caluniarão dessa forma adorarão eles mesmos a morte ao invés da vida, a loucura
ao invés da sabedoria; amaldiçoarão o amor e a fecundidade, encherão seus
templos de ossadas, esgotarão a juventude na solidão e nas lágrimas. As virgens
serão viúvas antes do tempo e extinguir-se-ão na tristeza, porque os homens
terão desprezado e profanado os mistérios sagrados de Ísis.”
O que o
profeta egípcio anunciava antecipadamente, os judeus nos acusam de ter feito.
Dizem eles que desprezamos o verdadeiro Deus, e adoramos a carne de um
enforcado. Rendemos cultos a essas relíquias da morte que Moisés declara
imundas.
Consagramos
nossos padres e nossos religiosos a um celibato que reprova a natureza e que
condena aquele que disse aos seres: “crescei e multiplicai-vos”.
Quanto
à moral de nossos evangelhos, confessam que é pura, não reprovam nada em
nossos apóstolos, e o autor do Sepher Toldos Jeschu diz que São
Pedro era um servidor do verdadeiro Deus, que vivia na austeridade e em
penitência, compondo hinos e morando no alto de uma torre; que pregava a
misericórdia e a doçura, recomendando aos cristãos que não maltratassem os
judeus. Mas, acrescenta o mesmo autor, após a morte de Cephas, outro doutor
veio a Roma; este sustentava que São Pedro tinha alterado os ensinamentos do
Mestre. Ele misturava um falso judaísmo às práticas cristãs, ameaçava aqueles
que não o obedeciam com um inferno ardente e lodoso; prometia às multidões um
milagre em confirmação de sua doutrina; mas quando ergueu sua cabeça contra o
céu, uma pedra caiu do céu e o esmagou. Assim perecem todos os seus inimigos,
Senhor, acrescenta finalizando o autor do Sepher, e que todos aqueles
que te amam sejam como o sol quando brilha com toda sua força.
Desse
modo, segundo os judeus que aceitam o Sepher Toldos Jeschu, não é
o cristianismo, mas sim o anticristianismo que os rechaça.
Ora, o
anticristianismo apareceu na Igreja, com efeito, desde os primeiros séculos e
no tempo mesmo dos apóstolos. O anticristo, dizia São João, é o que divide
Jesus Cristo, e ele já está neste mundo.
Em outro
lugar, esse apóstolo escreve que não ousa visitar seus fiéis, porque um prelado
orgulhoso, chamado Diotrephes, impede-os de recebê-los. “Sabei”, dizia São
Paulo, “que o mistério da iniqüidade já se realiza, de modo que aquele que
tem agora terá até a morte, depois se manifestará o filho da iniqüidade que se
eleva acima de tudo que é divino, a ponto de sentar-se no templo de Deus e de
se mostrar, ele próprio, como Deus, até que o Senhor o destrua pelo espírito de
sua palavra e pela luz resplandecente de seu segundo advento.”
Jesus era
um verdadeiro profeta e um verdadeiro sábio, dizem os muçulmanos, mas seus
discípulos tornaram-se insensatos e adoram-no como sendo um Deus.
No
entanto, judeus e mulçumanos se enganam; não adoramos Jesus como sendo um Deus
diferente do próprio Deus. Dizemos como Miguel dos hebreus: “Quis ut Deus?”
Dizemos com os crentes do islamismo: “Não há outro deus além do
Deus”; mas esse Deus único, indivisível, universal, nós o adoramos manifestando
a perfeição humana em Jesus Cristo.Acreditamos em uma aliança íntima da
divindade com a humanidade, da qual resulta, para empregar a linguagem dos
teólogos, não a confusão, mas a comunicação dos idiomas. Deus adota, para
curá-las, as fraquezas da humanidade, que ele eleva até ele, com sua força e
seus esplendores. Toda alma dotada do sentido inferior que adora, todo coração
que padece da necessidade de amar até o infinito, sentirá que nesta concepção
sublime, e só nela, o ideal religioso se determina e se completa; que todos os
sonhos dogmáticos e simbólicos só podem ser a investigação e a produção dessa
síntese, ao mesmo tempo divina e humana, que Deus em nós e nós em Deus com
Jesus Cristo e por Jesus Cristo é a paz, é a fé, é a esperança, é a caridade
sobre a terra, é, no céu, a eternidade da vida e da felicidade. Eis por que
nenhuma religião jamais substituirá o cristianismo no mundo. O que se poderia
acrescentar ao infinito? Que idéia seria ao mesmo tempo mais grandiosa e mais
consoladora que a do homem Deus consolidando, pelo seu exemplo, a grande lei da
abnegação que realiza os sacrifícios, assim consagrando para sempre a aliança e
como que a identificação de Deus com a humanidade?
Os
antigos acreditavam que nem toda verdade deve ser dita a todos, ao menos não da
mesma maneira, e ocultavam a ciência sob o véu da alegoria. É assim que as
mitologias se formaram. Aqueles que se enfadam dos símbolos mitológicos devem
renunciar à ciência do velho mundo cujos monumentos são todos mais ou menos
mitológicos.
Nosso
século que, contra todas as evidências, não admite em principio a desigualdade
das inteligências, detesta a mitologia. Procuram-se agora, fatos históricos e
positivos até nas teogonias de Sanchoniation e de Hesíodo. O que não se
compreende é tratado como absurdo e tolice, e é assim que [ Ernest
] Renan, mutilando e estropiando os textos da lenda evangélica, criou sua
pretensa Vida de Jesus.
O Jesus
de Renan, espécie de pastorinho entusiasta e entregue a não sei que onanismo
intelectual, meio louco e meio impostor, vendendo tudo barato desde que seja
adorado, é, apesar de toda a doce poesia que cerca as reminiscências
verdadeiramente cristãs do autor, um ser ridículo e odioso. Não se trata,
assim, do verdadeiro Jesus da lenda evangélica.
Aliás,
sendo Renan, segundo dizem, um estudioso eminente, versado na língua hebraica,
como pôde ignorar ou negligenciar o Sepher Toldos Jeschu, as
tradições talmudistas e os evangelhos apócrifos?
É que o
gênio simbólico causava horror à sua imaginação fria e positiva. É que ele
queria agradar aos ignorantes, cuja preguiça intelectual repele tudo o que
exige trabalho para ser compreendido. É que ele precisava de fama imediata, e é
preciso convir que conseguiu muito bem.
Mas,
conseguir agradar não é conseguir fazer bem. “Faça, pois, para
refutar Renan, alguma coisa que chegue a ser lida como seu livro”, dizia-nos um
grande artista, que nessa circunstância talvez não fosse um grande crítico. Não
podemos, em nome da ciência, aceitar esse desafio. Dizendo a verdade não
chegaremos a ser lidos tão universalmente, nem tão avidamente e de imediato,
mas chegaremos a ser lidos por leitores mais eminentes e por mais tempo.
O
Evangelho é um livro simbólico, o que não prova que Jesus não tenha
existido. Rousseau dizia que o inventor de uma história semelhante seria mais
extraordinário que o herói. Aceitamos plenamente este argumento. Jesus é
suficientemente grande quanto à inteligência e quanto ao coração para criar
esta admirável lenda, é superior àquele que adora estupidamente, ou que nega
mais estupidamente ainda o vulgo; ele é verdadeiramente a encarnação sempre
viva do verbo de verdade, e nós o saudamos Filho de Deus, em todo o resplendor
e em toda a energia do termo.
Até o
presente só se viu do Evangelho a letra que mata e a casca que seca;
iremos revelar o espírito e a vida. “Minhas palavras”, dizia Jesus, “são
espírito e vida, e, para compreendê-las, a matéria e a carne de nada
servem.”
Mas, para
explicar esse texto sagrado, quais são as nossas autoridades?
A ciência
e a razão.
- Mas a
fé o explicou de outro modo.
- A fé
cega, sim; a fé esclarecida, não.
- Mas
só Deus pode esclarecer a fé.
- Sim,
pela razão e pela ciência, que são também filhas de Deus.
Dito
isso, comecemos nosso estudo.
A palavra
“Cristo” quer dizer ungido ou sagrado; isto é, sacerdote e rei. O cristianismo
é a religião hierárquica das almas e a monarquia da mais perfeita devoção.
O cristianismo primitivo dos apóstolos de Jesus era uma doutrina secreta que
tinha seus signos, seus símbolos e seus diferentes graus de iniciação.
Para os
santos ou eleitos, o dogma cristão era uma sabedoria elevada e profunda; para
os simples catecúmenos, era uma maravilhosa e obscura revelação. Sabemos que o
Mestre sempre se exprimia por parábolas e ocultava a verdade sob o véu
transparente das imagens, a fim de proteger a nova ciência contra as blasfêmias
da ignorância e as profanações da maldade: “Não atirem suas pérolas aos
porcos”, dizia ele a seus discípulos, “para que eles não as pisoteiem, e para
que, voltando-se contra vocês, não os devorem”. Jesus também não deixou coisa
alguma escrita, mas legou a seus apóstolos suas tradições e seu método de
ensino.
Ora, eis
qual era o fundamento do dogma cristão:
A
inteligência é eterna; ela se expande porque é viva. A vida da
inteligência, sua expansão, é a palavra, o Verbo. O Verbo é, pois, eterno
como a inteligência, e o que é eterno é Deus.
O Verbo
manifesta-se pela ação criadora que produz a forma. Ele se reveste da forma
humana, e a carne torna-se a vestimenta do Verbo; havia o Verbo mesmo quando
não existia a expressão exata: assim o Verbo se fez carne.
O Verbo
perfeito é a unidade divina expressa na vida humana. O homem verdadeiro
é nosso Senhor, o chefe do qual todos os fiéis são os membros. A
humanidade, constituída por uma escala hierárquica e progressiva, tem por chefe
aquele que é Deus, porque ele é ao mesmo tempo o melhor dos homens, aquele
que morreu pelos outros a fim de reviver em todos. Somos todos, pois, um mesmo
corpo cuja alma deve ser a de Jesus Cristo, nosso protótipo e nosso modelo, o
Verbo feito carne, o Homem-Deus.
Tudo,
portanto, deve em princípio ser comum entre nós, como entre os membros de um
mesmo corpo; mas, de fato, cada membro deve se contentar com o lugar que ocupa,
e a ordem hierárquica é sagrada, como a vontade de Deus.
Cristo,
revelando a lei da unidade, que é a lei do amor, deu ao espírito força para
vencer o egoísmo da carne, que é a divisão e a morte; instituiu um signo
chamado Comunhão, para opô-lo ao egoísmo, que é o espírito de divisão e de
separação.
Ora, a
comunhão não era outra coisa senão a caridade representada por uma mesa comum,
e como Cristo havia destinado sua carne à dor e à morte para legar a seus fiéis
o pão fraterno ao qual ligava, no futuro, seu pensamento perseverante e sua
nova vida, dizia-lhes: “Comam todos, esta é a minha carne!” Também dizia do
vinho da fraternidade: “Bebam todos, este é o meu sangue, porque eu o derramei
inteiramente para assegurar a vocês para sempre a realidade desse signo.”
A
comunhão era, pois, a fraternidade divina e humana, e por conseguinte também a
liberdade; pois como pode haver opressor entre irmãos cujo pai é o próprio
Deus?
O
cristianismo era, portanto, a mudança mais radical, e vinha subverter o
velho mundo. Isso basta para explicar a necessidade dos mistérios, porque o
mundo há mil e oitocentos anos devia estar ainda menos disposto do que
hoje a se deixar destruir: ele tinha mais tempo para viver.
Todavia,
o Cristo não queria concluir revoluções senão pela força moral, sabendo bem que
só essa força não é cega. Ele havia plantado o grão da
mostardeira, e dizia a seus discípulos para esperar a árvore. Havia ocultado o
fermento na massa, e queria que a deixassem fermentar.
Nota nossa: esse é o tipo de leitura que literalmente nos deixa leve sem culpas!
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